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Olhar rubro

O vermelho daqueles olhos era tudo o que eu poderia me lembrar. Era como sangue coagulado, a espiral que me inspirava estava refletida naquele olhar profundo e predatório, devorando partes de mim como se fosse nada; e cada mordida, por mais dolorosa que fosse, não bastava para o saciar. Às vezes eu ainda sinto aquele olhar na espreita, escondendo-se no breu que invade a noite em sua glória, o torpor ainda me enfraquece quando a sensação percorre à espinha. E amedrontado, se assim posso dizer, eu percorro o labirinto do teu corpo e me perco nas curvas, eu fico encurralado em becos estreitos e me vejo preso.

Mas agora, ante o olhar rubro que tanto me perseguira em minhas noites de sono, não há medo. Emblora junto dele haja uma lâmina pressionada contra minha garganta, ainda me vejo preso nesses teus olhos insaciáveis, que ainda me estudam como um animal indefeso. Não importa o tempo que passa, eu ainda sou sua presa. E com este olhar, os dentes afundam em minha pele. A dor aguda rompe o silêncio da minha voz através de um grito estridente, arranhando o chão com respingos de sangue enquanto eu corto a escuridão com as labaredas que me queimam. E a lâmina se revira dentro de mim, me acariciando por dentro com tamanha gentileza que me faz delirar.

Estou imponente, prensado contra a madeira fria e agonizante da parede, meu tato se torna inútil a esse ponto, mas tudo se torna tão presente de repente. O vermelho oscila na escuridão, uma mera lembrança do que costumávamos ser parece se desfazer em algum lugar, e, por um instante, ouço o tilintar de vidro se quebrando, como se o coração que um dia batera por mim estivesse se partindo entre seus pulmões, afundado na miséria do teu ato.

"Por que o fez?" Minha voz ressoa debaixo do meu grunhido rancoroso, a dor me escapa pelos lábios feridos com mordidas de beijos passados, e a ferocidade que eu amava se mostrava um perigo agora. "O que eu fiz?"

E por que tivera de punir a mim, quem te ama com tanto fervor?

O rubro se fundiu com a escuridão, dissolvendo-se em uma lembrança. A mão que me segurava contra parede ainda estava quente, tremendo ao redor do meu pulso, apertando com temor. Eu senti as palavras nesse breve gesto. 'Eu arruino tudo o que toco', você disse. 'Me desculpe por arruinar você também.'

Mas não era a mim que estava arruinando naquele instante, que se passava e tornava-se mais escasso e pesado, e sim a ti. Era você quem segurara a arma para matar a pessoa que ouvira tuas juras de amor. Era você quem sairia ileso, com pele debaixo das unhas e a vívida memória do sangue nas tuas mãos, as roupas sujas com o escarlate que combinavam com esses olhos. E mesmo que eu me tornasse somente outro nome a ser esquecido e culpabilizado mais tarde, era você quem continuaria lidando com as consequências de seus erros de novo e de novo, derramando o sangue de muitos outros que virão depois de mim, assim como derramara o sangue daqueles que vieram antes. 

A faca me cortara mais a fundo, rasgando meus pulmões enquanto tentava tocar meu coração, para queimar em seu exterior as cicatrizes que continuavam a sangrar em ti. Os gritos se reduziram a gemidos, que se tornavam cada vez mais silenciosos à medida que meu corpo parava de responder. 

"Por quê?" Implorei novamente pela resposta, e nada se seguiu. O vermelho era invisível aos olhos, a faca se remexia e aprofundava-se mais e mais. Eu deveria compreender o teu medo de alguma maneira, o receio de olhar para mim mesmo banhado no breu poderia me explicar, mas não pude entender a crueldade de suas ações. Com a ponta fria dos meus dedos, tateei a escuridão em busca de teu rosto, úmido e quente diante de mim. O arrependimento imediato te rasgava assim como a faca fazia comigo. E com essa mesma mão, acariciei seus cabelos; enrolei-os em meus dedos e brinquei com eles, como fazia para te acalmar, e murmurei com uma voz doce e amarga, restringindo qualquer tipo de emoção que ambos poderiam sentir naquele instante. "Não olhe."

Não poderia impor nada senão um ato de misericórdia ao agressor, ao rubro que me conquistara pelo olhar, às mãos que gentilmente me envolveram em um abraço tão desesperado quanto teus soluços no breu eterno. Não pude dizer nada além disso, para poupar as mágoas que me seguiriam para o inferno. Eu não consegui te culpar pelo o que tinha acontecido, porque a cicatriz recente em meu peito ainda queimava de amor por você, mas tivemos de encerrar o ciclo. 

O vermelho daqueles olhos era tudo o que eu poderia me lembrar. A espiral que me inspira me arrastou para o inferno dos meus dias, antes que pudéssemos finalizar minha dor.

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