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Ira

 Devido a palavras, nossos caminhos se dispersaram em complexos paradoxos de pensamentos; em trilhos que diferem seus destinos e jamais se cruzam. Mas você ainda tem coragem de apontar para mim e dizer que a culpa é minha.

Costumávamos ser unidos, como um novelo de lã bem entrelaçado e enrolado, embaraçado demais para se soltar, presos um ao outro como peças de um quebra-cabeça colado. Éramos completos e felizes, a definição perfeita de 'família', sem segredos escondidos por trás de máscaras e mentiras. Agora eu entendo que era apenas jovem demais para perceber que nem tudo se mantém na mesmice, e que suas vontades se tornaram sedentas pela desgraça alheia, fadadas a se alimentar do caos e dos gritos que esse aglomerado de pessoas permeiam, e o sangue que nos liga se transforma em mero nada, irrelevante demais para que eu possa me importar. Pois tudo o que eu tinha é apenas isso: memórias de dias empoeirados com toda a tua falsidade e promessas de dias melhores, os lamentos das tuas dores e histórias do teu sofrimento afim de diminuir o meu.

E quer saber? Por um tempo, admito que teu plano tenha funcionado. Eu cedi, abaixei minha cabeça e deixei essas palavras correrem nas minhas veias, até que eu mesmo as estourei e derramei cada letra, pintando um círculo de sangue que me protege da tua feitiçaria. E de repente, eu fui capaz de enxergar toda a verdade julgada obsoleta. Em fluxos, ela surgiu diante dos meus olhos sendo apenas palavras: falsidade, ira, lealdade; carregadas de um juramento imaculado de mentiras, e temo que tenha permanecido a essa maneira por muito tempo. 

Com duas tragadas, o ar espuma dos meus lábios, condensando diante dos meus olhos escuros e cegos. Não posso ir a lugar algum sem ter tuas palavras lapidadas na minha mente e eu odeio isso. Apunhaladas e pontadas, eu quero gritar e correr e anunciar ao mundo todos os teus pecados como se fossem meus, mas lá estaria eu consumando os erros de outra pessoa e assumindo a culpa mais uma vez. Então apenas engulo o orgulho e trago a fumaça em meus pulmões, mordendo o lábio, eu degusto o sangue fragmentado em desprezo e ódio, as sensações de aprisionamento e liberdade lutando entre si enquanto eu apenas assisto a desgraça se erguer novamente a partir das tuas palavras.

E eu mais uma vez terei de ouvir.

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